Tuesday 14 April 2015

Sobre iPhones e Cabeleireiros

Inflação e produtividade são dois conceitos particularmente problemáticos. Pela mesma razão: eles derivam da comparação do incongruente. Um iPhone e um corte de cabelo não são exatamente dois bens comensuráveis. É necessária uma abstração: de que em última instância o grosso do valor de uma mercadoria é definido pela quantidade e qualidade de trabalho empenhado nela. Noutras palavras, os outros tantos fatores subjacentes, tais como remuneração do estoque de capital físico e intelectual, marcas, poder de barganha, dentre outros, são de alguma forma secundários à monta de trabalho no processo produtivo. Mais do que isso, existe o pressuposto de que as diferentes formas de trabalho são comparáveis entre si e são de alguma forma proporcionais à produtividade subjacente. Mesmo quando este trabalho é realizado noutra economia! O iPhone é certamente um grande exemplo: o trabalho efetivamente empenhado é provavelmente a variável de menor relevância em seu valor final. Existe a marca, existe a infinidade de patentes nos componentes e no software, que nem de longe preservam alguma proporcionalidade ao estoque de esforço humano subjacente, existe muita energia, que em tempos recentes e por razões que não convém discutir aqui, é negociada a múltiplos elevados do custo médio de produção, e finalmente há algum trabalho manual. Muito pouco trabalho manual. No processo de manufatura, no transporte, no varejo. Não obstante, eles têm que ser comparados para se definir de forma adequada a inflação e a produtividade.

Note que refiro-me a inflação e não a custo de vida. Inflação não é custo de vida. No processo de desenvolvimento de uma economia, é natural esperar que a valor remunerado a trabalho comparável convirja em algum horizonte de tempo aos valores praticados nas economias desenvolvidas. O cabeleireiro americano não é mais produtivo que o cabeleireiro brasileiro. O que distingue sua remuneração relativa é outro fator que deveria desaparecer no processo de desenvolvimento da economia Brasileira. A única forma de uma economia se desenvolver sem inflar nominalmente o custo de vida seria através de um processo contínuo e duradouro de apreciação das taxas de câmbio. Mas isto raramente ocorre. Por uma razão muito simples: tipicamente numa economia em desenvolvimento as assimetrias de remuneração são muito maiores na média do que no topo. Um processo contínuo de apreciação cambial muito rapidamente levaria a níveis de remuneração dos mais ricos a um patamar superior ao praticado nas economias desenvolvidas. A não ser que a remuneração do topo caísse em termos nominais. Acontece que isto é muito difícil. É lícito supor que o desenvolvimento se dá pelo caminho com menos atrito, e este é pela elevação do custo de vida. Se isto é incorporado ou não numa medida de inflação é problema metodológico. Não deveria. Inflação não se trata disso, mas de um fenômeno completamente indiscriminado e mais ou menos determinístico de elevação dos níveis de preço. Não de variações de preços relativos.

Mas o que distingue o corte de cabelo do iPhone enquanto processos produtivos? A colaboração do capital. Um cabeleireiro hoje não é nada diferente de um cabeleireiro de 20 anos atrás. Ele, em tese, não é nem mais nem menos produtivo do que antes. O iPhone sequer existia 10 anos atrás. O processo de manufatura revolucionou-se por completo nos últimos 20 anos. Tornou-se obscenamente intensivo em direitos de propriedade intelectual em detrimento do trabalho. De um lado temos ganhos insignificantes de produtividade e do outro um ganho estapafúrdio de produtividade. O conceito de produtividade tornou-se obsoleto. Nada mais do que isso. Noutros tempos foi útil. Hoje cria mais problemas do que esclarecimentos. Ainda assim, desenvolvimento econômico trata-se de alguma forma de prover mais bens e serviços por quantidade de trabalho. Numa economia na qual uma parte da mão de obra é empenhada sem praticamente auxílio algum de tecnologia e outra parte é empenhada com níveis obscenos de tecnologia, existe um caminho aparentemente seguro rumo ao desenvolvimento: deslocar a força de trabalho de uma classe de atividade para outra.

Mais fácil falar do que fazer. Existem ocupações de baixa produtividade (neste sentido de uso da tecnologia) porque tais atividades são demandadas. E a demanda agregada por tais atividades é extremamente dependente do nível de renda dos mais ricos. Deveras, a chamada classe média alta cria uma demanda totalmente desproporcional por serviços tecnologicamente improdutivos. Domésticas, porteiros, babás, garçons, motoristas, manobristas, vendedores, consultores financeiros, tratamentos estéticos, psicólogos, professores, etc. Em sociedades particularmente desiguais como a Brasileira estas distorções são especialmente sensíveis. Os cinco por cento mais ricos detém algo da ordem de 45% da renda total. Que são desproporcionalmente despendidos em atividades tecnologicamente improdutivas. E eis a armadilha brasileira: a fração da renda dos 5% mais ricos não caiu, antes subiu. O fenômeno de redistribuição de renda deu-se unicamente entre a longa cauda dos mais pobres e o que era genuinamente a classe média. E saciou-se pela oferta de bens de consumo importados e pelo elevado nível de subemprego prévio. A demanda pelo trabalho tecnologicamente improdutivo criada pelos mais ricos não perdeu importância. Claramente este processo esgotou-se. O futuro desenvolvimento brasileiro depende necessariamente da queda da participação dos mais ricos no monto da renda total. Quer pela competição, quer pela tributação, quer pela diminuição da rentabilidade da riqueza. De alguma forma isto tem que acontecer. Caso contrário entraremos noutro período de prolongada estagnação.

2 comments:

  1. iPhones e Cabeleireiros estão na moda graças aos ricos e novos ricos! Não foi seguindo as idéias de Piketty que os EUA prosperaram. Participe do rega-bofe promovido pela "casta alta" e seja feliz, Pepito! Compre ações de Apple e Ulta. Abs

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  2. Todo mundo sabe que os EUA prosperaram sendo uma enorme classe média. Nas suas décadas milagrosas pós segunda guerra os EUA tinham o sistema tributário mais progressivo do mundo (o qual, aliás, impuseram também à Alemanha Ocidental e ao Japão). Entre 1946 e 1964 a taxa marginal de imposto de renda eram absurdos 91%. Caiu para 70% em 1965. Em 1965 a taxa incidia sobre a fatia da renda acima de 200K USD (algo em torno de 1.5 milhão hoje). Os EUA hoje não são nem sombra do que já foram em termos de inovação, dinamismo e competitividade. De acordo com meu raciocínio isto não é nada surpreendente: o perfil de consumo dos mais prósperos cria uma demanda alta por atividades de baixa intensidade tecnológica. Não é um julgamento, só uma constatação. Havendo demanda haverá sempre oferta. O que regula o mercado é o preço. O que regula a demanda por mão-de-obra de baixa intensidade tecnológica é o nível de consumo relativo entre os mais ricos e o resto. Note que não estou falando sobre qualificações: coloquei o professor no mesmo balde do manobrista. É uma questão de perfil de consumo agregado da economia: se o consumo é maior em produtos/serviços que são fruto de trabalho que se apóia fortemente em tecnologia (manufatura, bancos, informação,comunicação, entretenimento de massa, transporte, etc) ou em produtos/serviços que são fruto de trabalho tecnologicamente neutro (por exemplo as atividade citadas). Simples assim.

    http://en.wikipedia.org/wiki/Income_tax_in_the_United_States#/media/File:Historical_Mariginal_Tax_Rate_for_Highest_and_Lowest_Income_Earners.jpg

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