Monday 30 March 2015

Mangabeira, a Vanguarda e os Evangélicos

É sempre cativante ler, ouvir ou ver o Prof. Mangabeira Unger. A lucidez lógica do pensamento, a visão abrangente do fenômeno social, a ótica do direito enquanto atividade transformadora aliados à exuberante energia promove um espetáculo algo raro nos intelectuais de hoje.
Sua obsessão recente é a promoção do que ele chama de democratização da oferta através de práticas da vanguarda do capitalismo que, dentre outras coisas, está fundamentada no princípio de competição cooperativa. Os setores da vanguarda econômica teriam segundo ele restringido a competição ao essencial, e fora de escopo praticam modelos cooperativos em busca de ganhos de eficiência. Isto é claramente evidente no setor de tecnologia de ponta. A explosão dos esforços cooperativos das grandes empresas de vanguarda em tecnologia é de fato impressionantes: do financiamento do Linux, passando pela liberalidade de abertura de códigos (até a temerária Microsoft aderiu à tendência numa tentativa de manter-se relevante), à proposição de protocolos e sistemas de hardware padronizados. Dentre várias outras iniciativas.
Mas soa bastante artificial à primeira vista a exposição de tal modelo de negócios ao Brasil. Falta o exemplo ao professor. O que é curioso, uma vez que o grande exemplo de vanguarda produtiva no Brasil está na cara. Quer por esnobismo intelectual, afastamento cultural ou qualquer outro motivo, passa-lhe desapercebido. A vanguarda produtiva no Brasil é o movimento evangélico. Não me importa aqui discutir os seus aspectos religiosos, seus aspectos culturais, ainda que tremendamente interessantes em si mesmos. Quer olhar o movimento evangélico enquanto fenômeno econômico. Que o leitor não seja ingênuo: é um fenômeno econômico de monta. O IBGE pode não saber medir, mas é disparado o setor econômico com maior crescimento, virilidade e consistência das últimas décadas. E é claramente algo que o Brasil superou o mundo inteiro em termos de inovação, adaptação e escopo. Para os de fora a abrangência da atividade econômica não é evidente: não se trata de cultos ocasionais aos domingos. Existe toda uma gama de atividades circunscritas à vida comunitária das igrejas que é absolutamente impressionante: aconselhamento espiritual, psicológico, marital, atividades de convívio, shows musicais, bazares, ações sociais, literatura, música, teatro, etc. Estamos falando de algo talvez da ordem de 3% do PIB em atividades econômicas. Algumas remuneradas, outras não: mas atividades econômicas de qualquer jeito.
Como isto é possível? Justamente pelo princípio da cooperação competitiva. É óbvio que as diversas igrejas estão competindo entre si: basta ver a densidade de templos, dos mais extravagantes aos mais simples, em qualquer grande centro urbano país afora. Nem por isso elas deixam de cooperar entre si. Quer por motivação espiritual quer por interesse econômico elas entendem que cooperando são maiores do que simplesmente competindo. Cooperando elas atentam contra a retaguarda econômica representada pelas manifestações religiosas tradicionais: católicos, protestantes, espíritas e umbandistas são igualmente incapazes de enfrentar em pé de igualdade esta nova explosão econômica. Da mesma forma que as empresas da velha tecnologia são incapazes de afrontar a vanguarda econômica da nova tecnologia. Ou você adere a esta vanguarda do sistema produtivo (wallmart talvez seja um grande exemplo), ou reconhece a inevitabilidade de seu fim (IBM talvez seja um grande exemplo).

Em termos econômicos não há nada de diferente entre o vale do silício e o movimento evangélico no Brasil. Os dois representam o estado da arte em seus respectivos setores. Um é celebrado universalmente como exemplo da nova economia. O outro não parece ser notado por ninguém. Até que um dia será notado. E suas lições aprendidas. 

Ben Bernanke und Das Kapital

Well Ben Bernanke is a blogger. Some sort of central bank eulogy it seems. He is defending the thesis that yield depression in developed economies is not a consequence of central bankers’ will. There are supposedly structural reasons, which the great master has promised us to unravel in the next episodes.
While we obviously agree about the thesis, the framework proposed, invoking Wicksellian arguments of natural rates of interest linked to growth seems misguided. The contemporary obsession with an accounting perspective of capital seems a great impediment for the proper understanding the contemporary world. We must seek a deeper definition of capital to move forward.
From a social perspective, the nature of capital is straightforward: it is the phenomenon of expropriation of labor from a fraction of its outcome. Either by taxation, tariffs, rent or profit. We are not interested here in the reasons and manifestations of this exploitation. Rather we want to note that the potential exploitation is not arbitrary: by competition between enterprises in the goods and services markets, by competition in the labor market, by competition in the real estate market, by competition in the vote “market”, exploitation is limited. Frankly, it is quite stable over time: from time to time (decades) bargaining power shifts from one side to another, but on the long run there seems to be some equilibrium level.  
On the other hand, the total amount of wealth accounted for in mark-to-market basis seems unbounded. How is it possible? Temporarily such a divergence can be justified by ongoing indebtedness of households or governments. Postpone exploitation to the future! There are limits to it: on the private sector, at some point there will not be any creditworthy borrower with solid collateral. This is what has happened in 2008. Some critical threshold of household indebtedness was crossed. On the public sector, it is obvious to anyone that apart from a peculiar country in South America, no democracy is capable of providing consistent primary surplus to exert the exploitation by means of taxation. One can advocate zero primary deficits, but a surplus? The tentative experience to substitute household indebtedness by massive public deficits after 2008 was definitely aborted with the emergence of Euro crisis. The political reasons are somewhat opaque but no one can deny that there is no propensity in the world to endure large fiscal deficits. The worst outcome from the point of view of capital: no large deficits, nor primary surplus. Just the inability of governments to use their immense power in the interests of capital.
Markets have finally tried the ultimate bet: let us exploit emerging markets! Impressive amounts of capital flew into emerging economies following 2010, far more than any one of them had the ability to absorb. The result was a universal credit boom in emerging economies that defeated the original purpose: now even a greater amount of claims for wealth seeking labor exploitation. Even worse, the artificial growth provided by the liquidity has turned bargaining power to labor, not to capital. So much lesser exploitation capacity there.
The final blow on capital occurred with the collapse of oil prices, which represents some marginal form of exploitation. Therefore, in mid 14 reality imposed itself. There were two possibilities: either a significant write down in the claims of wealth or the annihilation of yields on capital. Central bankers had given their answer long ago: they would do whatever it takes to prevent the write-down. Hundreds of trillions of marked-to-market worth of accounting wealth would have to satiate itself with the existing exploitive capacity. This is an ongoing process. It has started with high-grade bonds but it will inevitably expand its horizons to every manifestation of capital. Returns on capital is on a downward secular trend.

Which bring us to the real question, the one that surprisingly Bernanke has not proposed: is capitalism viable without a cost for capital? Like Ben Bernanke, we will answer this in the next episode. 

Friday 27 March 2015

Sobre os aforismas econômicos

Na sua História da Análise Econômica Schumpeter debate em profundidade o tema acerca das relações econômicas. Vejamos um trecho de relevo em tradução livre:
“Em si mesmo não há nada de novo no que se convencionou chamar de equação de Fisher ou Newcomb-Fisher. Ela simplesmente relaciona o nível de preço (P) com (1) a quantidade de dinheiro em circulação (M); (2) sua ‘eficiência’ ou velocidade (V); e (3) o volume (físico) do comércio (T). Vamos expressar isto escrevendo P = f(M,V,T). A esta relação funcional a equação de Fisher impõe a forma P = f(V,M,T) = MV / T ou MV = PT. De novo, esta equação não é uma identidade, mas uma condição de equilíbrio. De fato, Fisher não disse que MV é a mesma coisa que PT, ou que MV é igual a PT por definição: dados os valores de M, V e T, eles tendem a trazer um determinado valor de P, mas eles simplesmente não  traduzem um certo P.”
Conceitualmente o que nos importa aqui é notar que a identidade MV = PT deriva de uma tautologia fictícia. Num mundo de poucos bens, todos explicitamente transacionados por uma única moeda metálica, existe uma restrição operacional às transações dado um certo nível de preços. Para que o volume transacionado fosse alto, uma mesma moeda teria que passar de mão-em-mão a uma frequência bastante alto, o que pode ser impossível ou muito custoso dadas as possíveis restrições geográficas e demográficas. Neste sentido, a relação seria MV > PT, e na hipótese de eficiente uso da escassez da moeda metálica, MV = PT. Porquanto de um lado M, V e T teriam existência material, e, por conseguinte, restrições a ajustes sem custo econômico, e do outro P é mera realização social, quem pode sair de um patamar a outro sem envolver nenhum outro inter-relacionamento econômico senão a transação em si, Fisher propõe a regra numa dimensão de causalidade. Conhecidos M, V e T então P tenderia a se equilibrar na média próximo à relação funcional f(V, M, T) = MV / T. Isto não é um aforisma, mas em verdade uma proposição teórica justificada pelo apelo ao bom senso no caso limite em que as transações comerciais são efetivamente levadas a cabo pela troca monetária em forma metálica. Se concebe-se a possibilidade de transações sob crédito ou de formas alternativas de dinheiro, então o argumento não vale mais. A própria identificação do significado das letras torna-se opaco. Desnudada, a relação resume-se a mera identidade tautológica: o valor agregado das mercadorias comercializadas em denominação monetária é igual ao montante de transações monetárias realizadas no âmbito do comércio de mercadorias. Noutras palavras (PT) e (MV) são formas alternativas de se referir a uma mesma coisa. As causalidades não são nada evidentes.
Que se diga então com todas as letras: qualquer identidade econômica são ou mera tautologia linguística ou uma afirmação acerca das restrições econômicas de ajuste de algumas das variáveis envolvidas. Se for o primeiro caso, não dizem nada mais do que 2 = 1 + 1. Se for o segunda caso, existe uma proposição teórica por trás, que pode ser correta ou não. Escrever uma identidade tautológica na forma de equação e interpretar a seu bel prazer o significado das letrinhas, isto é desonestidade intelectual. Ou simplesmente burrice mesmo.

Monday 16 March 2015

Em defesa de SP

Se algo ficou evidente nestas manifestações do dia 15, se é que havia alguma ambiguidade antes, é que o que se passa em SP é qualitativamente diferente do que se passa no resto do Brasil. E sem entender as reais causas disto qualquer resposta política será irrelevante. O discurso corrente do governo apontando para o conservadorismo e proselitismo paulista é patético. Tampouco a oposição, ou melhor, as oposições, parecem ser capazes de organizar um conjunto coerente de ideias para expressar sua angústia. Para mim é bastante evidente que esta angústia decorre da decadência econômica de SP. Decadência ainda não totalmente manifesta nas estatísticas, mas aparente na constatação de que a vanguarda econômica do Brasil não está em SP. Pela primeira vez em muito tempo. A fronteira do agronegócio, a mineração, a extração de petróleo, as iniciativas de energia renovável, as grandes obras de infraestrutura e mesmo a enorme expansão do comércio e dos serviços, não encontram em SP seu epicentro.
Mas a causa profunda da decadência não reside na geografia ou mesmo na política. O modelo econômico de SP baseado nas multinacionais, no sistema financeiro e na mídia nacional se esgotou, cada qual a seu modo, em decorrência da evolução tecnológica. No caso das multinacionais, o movimento de centralização global do processo empresarial retirou grande parte do poder de barganha da burocracia empresarial local. As assimetrias de condições de trabalho entre empresas multinacionais e empresas nacionais, que em nossa compreensão decorriam da usurpação por parte da burocracia empresarial das filiais de parte do poder de mercado das matrizes, simplesmente desapareceu. Estas condições não apenas alimentavam diretamente os termos de trabalho dos empregados das multinacionais mas também todo o universo de empresas e profissionais liberais que viviam de prestar serviços a estas. A equalização das condições laborais da empresa nacional com as multinacionais teve como impacto indireto a quebra das vantagens competitivas daquelas outras empresas que gravitavam em torno das multinacionais. A competição passou a ser mais igual, o que certamente abriu espaço para o florescimento de outras empresas em outros estados.
O impacto tecnológico no sistema financeiro é bem menos sutil. A partir da década de 1980 quando o estado da arte em tecnologia da informação viabilizou a centralização total do back office do setor financeiro, isto implicou numa enorme concentração de postos de trabalho nas respectivas sedes. Como o sistema financeiro concentrou-se profundamente em SP, e como foi e continua sendo, uma atividade altamente lucrativa, isto propiciou a proliferação de um sem número de postos de trabalho altamente remunerado em termos relativos sem nenhuma contrapartida na grande maioria dos demais estados. Mas a tecnologia continuou evoluindo, e o nível de automação propiciado, reverteu pêndulo mais uma vez, agora em direção à rede de agências e serviços financeiros. A importância do valor adicionado pelas atividades da sede declinou substancialmente em relação ao valor adicionado pelas atividades comerciais descentralizadas nos últimos anos.
Finalmente, no que se refere à mídia nacional o impacto da tecnologia é tão universalmente compreendido que não cabem explicações adicionais. É uma atividade que se descentralizou de forma permanente e consistente. A informação e em certa medida a cultura torna-se ou radicalmente local ou radicalmente global, e dificilmente um novo movimento de centralização ocorrerá. O que ainda subsiste provavelmente sumirá com o tempo.
Tendo sido diagnosticados os vértices da decadência econômica de SP, resta a proposição de uma alternativa. Num mundo ideal esta alternativa surgiria organicamente da própria sociedade, mas falta-lhe liderança, falta-lhe coordenação. Não é demais esperar que pelo menos parte da iniciativa venha do poder público, com sua invejável envergadura econômica e decorrente capacidade de conglomerar recursos. E como há pelo menos vinte anos o poder político discricionário vem sendo profundamente centralizado no poder federativo, é demasiado ingênuo que se cobre esta iniciativa primordialmente dos governos locais. Com o poder vem a responsabilidade. E há muito tempo o poder federal abstém-se da responsabilidade de liderar SP como nova vanguarda econômica. Muito pelo contrário, em sua opção preferencial pelos pobres, não somente pela renda, mas também pela geografia, o governo central imputa ao povo de SP o peso das transformações necessárias do Brasil sem nada oferecer-lhe em troca. SP se beneficia da prosperidade nacional? É claro que sim. Isto é suficiente para gerar uma nova onda de desenvolvimento autônomo, dinâmico e criativo? Não. É disto que SP precisa. Urgentemente!   

Presidenta, o povo de São Paulo não quer saber se a Sra. governa para 200 milhões de Brasileiros. Queremos saber se a Sra. governa para 26 estados. SP não quer as grandes obras, não quer grandes programas redistributivos, não quer grandes verbas. Quer liderança, quer estratégia, quer uma visão, enfim quer uma política. O Brasil viveu nos últimos 12 anos da ilusão que poderia promover uma estratégia de desenvolvimento sem ter SP como vanguarda. Não deu certo. Nunca daria certo. Tentemos de novo, agora de forma coordenada. Que não se impute mais qualidades ao povo de SP que não lhe são próprias. Este povo recebeu de braços abertos povos do país e do mundo. Este povo foi vanguarda política, berço dos movimentos progressistas modernos. Não é um povo, em sua vasta maioria, reacionário e intolerante. 

Friday 13 March 2015

Crédito e mais crédito, por favor

Tradicionalmente em seu processo de desenvolvimento prevalecia uma relativa harmonia dentro dos diversos setores de uma economia. Toda vez que um ou outro setor entrava em prolongado descompasso com os demais, fricções apareciam, que cedo ou tarde implicavam num reequilíbrio dos setores econômicos, tipicamente através de uma recessão. Esta regra do jogo mudou radicalmente nos últimos 20 anos, durante os quais testemunhamos ininterruptamente um processo totalmente desarmonioso de desenvolvimento econômico em escala global. Em cada economia nacional, setores de vanguarda e de retaguarda puderam abrir enormes hiatos sem nunca evidenciarem atritos relevantes. Parte deve ser atribuído à globalização do comércio, parte à própria tecnologia. Não nos interessam as causas aqui, apenas a constatação do fenômeno.

A própria taxonomia dos setores econômicos tornou-se diferente. Olhando para a história econômica recente, podemos identificar alguns grandes grupos: a infraestrutura burocrática de estado, os serviços de consumo universais oferecidos pelo estado, os serviços discricionários oferecidos pelo estado, os bens e serviços oferecidos consumidos pelo setor privado, a manufatura dos bens de consumo, o setor rural, os investimentos na capacidade produtiva e finalmente os investimentos em infraestrutura física. Propositadamente misturamos aspectos da demanda e da oferta. Numa economia sem fricções, a identidade tautológica tradicional entre demanda e oferta é de pouca relevância pragmática. Mais importante é entender as forças motrizes por detrás das atividades. O consumo pressupõe o comércio, mas não mais a produção doméstica. Estruturalmente.
Cada economia nacional do globo apresentou uma composição idiossincrática de dinamismo entre os diversos setores. Não há necessariamente que se julgar uns melhores que os outros: a economia global virou um sistema orgânico, interdependente. Para que uma economia possa ser de um jeito é necessário que outras sejam de outro jeito. Caso contrário as fricções apareceriam. No caso brasileiro é muito óbvia a composição. Praticamente todo o dinamismo econômico ficou concentrado no setor de consumo de bens e serviços. Deveras, pelas estatísticas de comércio do IBGE, nos últimos 12 anos o volume de comércio de mercadorias mais do que dobrou. As estatísticas para serviços são bem mais toscas, mas não é difícil de contemplar que o mesmo tenha acontecido com a maioria dos setores de serviço privado: restaurantes, bares, espetáculos, finanças, comunicações, ensino superior, ensino de línguas, medicina privada, tratamento odontológico, etc., tudo pare ter o dobro da dimensão de doze anos atrás. Tudo o que de mais houve na economia brasileira é absolutamente irrelevante comparado com a magnitude do crescimento do comércio dos bens e serviços.

Dada a constatação, há duas, apenas duas, questões propositivas relevantes. Quais os riscos subjacentes de uma reversão de tendência? Qual a alternativa? Para responder a primeira pergunta é importante entender as peculiaridades da atividade do comércio. O comércio não toma risco de capital no sentido tradicional de entulhar recursos hoje na esperança de receitas futuras. O comércio toma risco na operação no sentido de assumir custos fixos na esperança de que a demanda futura seja suficiente para compensá-los. A grande incógnita é se uma crise de crédito pode decorrer de uma crise do comércio. O livro-texto sugere que não. Crises de crédito derivam tipicamente de abusos ou no emprego inútil do capital ou na alavancagem das pessoas, nenhum fator dos quais está presente no Brasil. Não obstante vivenciamos um ciclo creditício de dimensões fantásticas, de alguma forma financiando o comércio. Ainda que seja difícil identificar a teia de relacionamentos que leva a isto, é ridícula a hipótese de que o ciclo creditício não esteja diretamente associado ao setor econômico de vanguarda. Se o setor dinâmico da economia brasileira foi o comércio, então é necessário que o ciclo creditício o tenha financiado de alguma forma. Agora, um setor que por si só já assume substanciais riscos na sua operação estar exposto de alguma forma a alavancagem financeira é algo bastante preocupante. Daí nossa enorme desconforto diante da complacência universal acerca dos riscos creditícios na economia brasileira. O grande risco ainda não parece ter sido identificado por ninguém.
Ainda que nossa análise esteja equivocada, e que o evento de crédito nunca se concretize, qual a alternativa? Qual o novo setor de vanguarda da economia Brasileira? Como defendemos acima, hoje, isto não parece ser mais uma questão definida localmente na economia, mas impostas pelas condições prevalentes da economia global. Se partirmos desta ótica, a resposta é evidente. Existe no mundo inteiro uma enorme carência por alternativas de investimento que propiciem geração de caixa. O grande investimento de magnitude que provê geração de caixa imediato é o investimento em infraestrutura necessária hoje. Não algo que dê fruto daqui a dez anos, não algo aumente o nível de capacidade ociosa, mas algo que cumpra uma necessidade premente. E é óbvio que o Brasil é farto de oportunidades neste sentido: temos tudo por fazer. Qualquer coisa terá efeito imediato. Qualquer ferrovia, qualquer estrada, qualquer porto, qualquer hidroelétrica, qualquer metrô. A demanda potencial por infraestrutura física no Brasil é monumental. E existe uma quantidade muito mais monumental de capital no mundo buscando exatamente este tipo de investimento. Parece ser uma questão trivial de juntar a oferta com a demanda, que pressupõe entretanto alguma coordenação política que o Brasil não parece dispor neste momento. Todos os esforços estão concentrados numa agenda fiscal que não serve a qualquer outro interesse senão acalmar o ânimo do rentista. Há que se estabelecer urgentemente uma agenda positiva: o capital virá, isto é certo. Por que não há alternativas.


Parece irônico propor a solução de uma potencial crise de crédito com mais crédito. Mas não é exatamente assim que as coisas funcionam?  

Monday 9 March 2015

Feyerabend E Brasil: contra o método!

Há uma fina ironia no fato de que o pensamento econômico nem de longe acompanha o ritmo do desenvolvimento das economias. Na melhor das hipóteses, estamos analisando o presente com um arcabouço teórico que há muito se tornou caduco. Mais frequentemente vemos análises através de dogmatismo teleologista que deixaria até mesmo um Aristóteles enrubescido.  Mas deixemos de lado aqueles tantos que entendem a economia como ramo da estética ou da ética, e nos concentremos nos que a consideram como disciplina com pretensão científica.
Há um sem número de constatações econômicas históricas que, ainda que bem fundamentadas em seu contexto original, tornaram-se obsoletas pela simples evolução do ordenamento econômico. Conceitos como os de saldo em conta corrente tornaram-se inúteis num mundo em que o capital financeiro é gerido globalmente a as transações financeiras das empresas são ditadas por arbitragens fiscais e não por meras decisões de investimento em capital produtivo. Não obstante, todos continuamos olhando os números de saldos em conta corrente como se alguma informação houvesse lá.

Em sua pretensão científica a economia como nenhuma outra modalidade do saber humano deveria se libertar do apego à tradição e abraçar a doutrina da revolução contínua do pensamento. Se o anarquismo de Feyerabend tem uma real utilidade é em economia: aqui não pode haver uma regra metodológica universal, pelo simples fato de que as supostas regras por detrás do objeto de estudo estão em contínua transformação. Infelizmente a estrutura acadêmica vigente é fundada no pressuposto da estabilidade: o contínuo questionamento da validade do saber acumulado é anátema.
Talvez em nenhuma outra dimensão esta inadequação seja mais evidente do que na incapacidade dos teóricos de compreender as implicações macroeconômicas da evolução tecnológica das indústrias manufatureiras. Ler os textos recentes de Bresser-Pereira e sua obsessão com a doença holandesa são nítido testemunho disso. Ele fala de um mundo em que a indústria era dominada pelo preço da mão-de-obra como se esta realidade fosse ainda presente. Qualquer pessoa que olhe friamente para a realidade da indústria contemporânea prontamente iria identificar o ridículo do raciocínio. Pode colocar a taxa de câmbio a qualquer patamar, a indústria brasileira nunca será competitiva nem com a indústria de ponta dos países desenvolvidos, que são fruto de décadas de intensivos investimentos em tecnologia e treinamento de mã-de-obra altamente especializada, nem tampouco com a magnífica escala das indústrias asiáticas, que nada tem que ver com o custo da mão-de-obra, mas antes são fruto da absurda flexibilidade do sistema produtivo. Se alguém em 2015 ainda acha que a revolução industrial Chinesa deriva do custo da mão-de-obra, este alguém precisa seriamente começar a estudar o assunto com algum cuidado. O que a China ofereceu ao mundo não foi mão-de-obra barata, antes, uma tamanha inovação em tecnologia social, que viabilizou transformar-se em base manufatureira do mundo inteiro numa única década. Não é por que se trata de alocação de massas enormes de gente sem grandes qualificações que não se trata de inovação. O iPhone só foi permitido na escala que foi, e o iPhone só faz sentido na escala que foi, pela combinação da inovação tecnológica americana com a inovação social Chinesa. Os dois cooperam em pé de igualdade no sucesso final do produto.

Um dos efeitos nefastos da falta de compreensão do processo manufatureiro se manifesta na incapacidade de entendimento dos fatores envolvidos nas transações comerciais contemporâneas, seus entraves ao desenvolvimento das economias emergentes a as possíveis estratégias para romper as amarras existentes. Sem este diagnóstico acurado, qualquer estratégia de desenvolvimento econômico é pura especulação irresponsável. E que se diga com todas as letras: não se transaciona mais mão-de-obra. O valor adicionado diretamente pelo trabalho manufatureiro ao produto do comercio internacional é quase irrelevante. O que se negocia, em termos de fatores econômicos subjacentes, são outras coisas: escassez, saber tecnológico, patentes e marcas. São estes, e somente estes, os quatro fatores determinantes do comércio internacional. Como disse acima: o que a China exporta não é mão-de-obra, é um saber tecnológico de engenharia social. Não existisse esta tecnologia social, o sistema produtivo seria certamente outro, empregando agregadamente muito menos gente no processo manufatureiro global. Vivemos num mundo peculiar, aonde o potencial de inventividade humano é subaproveitado por conta da existência de uma economia capaz de prover insumos humanos a um custo total menor do que insumos tecnológicos ainda que com custos unitários bem menores. Eis a natureza do capitalismo: com certeza existe valor para a Apple criar uma sazonalidade brutal na produção de seus telefones: gente pode ser demitida, robôs altamente especializados não! Analogamente podemos analisar o caso das filipinas e da índia que numa primeira visão exportam de mão-de-obra barata através de serviços. Mas é uma leitura rasa: eles estão exportando sua fluência nativa na língua inglesa, viabilizada pelos avanços na tecnologia da informação. 

Tendo diagnosticado os quatro fatores subjacentes no comércio internacional, não é difícil perceber o quão mal posicionado está o Brasil em termos competitivos. Não dispõe de saber tecnológico quase nenhum, não dispõe de patentes relevantes, não possui nenhuma marca de relevância global e, o mais preocupante, não possui bens naturais escassos em quantidades. Terra arável e minério de ferro não são bens escassos. Foram tornados escassos conjunturalmente pela maluquice que foi a dimensão do desenvolvimento Chino e sua intrigante demanda por minério de ferro e proteína, e pela decisão casuística dos Estados Unidos de forçar o programa de etanol de milho que acabou reduzindo a oferta global de terra arável para alimentos de forma significativa. Dois eventos conjunturais que beneficiaram enormemente o Brasil. Mas no longo prazo a fragilidade competitiva da economia Brasileira é evidente.

Temos que ter uma estratégia. Não uma visão megalomaníaca de competir com a indústria alemã ou com a indústria chinesa. Uma estratégia convincente. Não temos a menor chance de competir no saber tecnológico. Mas temos chances de competir nas patentes e nas marcas. E de preferência naquelas áreas em que as pré-condições sejam menos importantes, em que o isolamento geográfico do Brasil seja menos relevante, em que a precariedade da massa de mão-de-obra do Brasileiro não seja empecilho.

E não se trata apenas de competir ofensivamente, mas também defensivamente. Uma estratégia que crie uma vanguarda econômica nacional, não formada por grandes conglomerados oligopolistas, mas por uma vanguarda do processo produtivo, fundada em pequenas e médias empresas, numa competição cooperativa, que permita afrontar o poder das marcas e das patentes externas. Que se entenda de antemão: a vasta maioria das patentes e das marcas estão fundamentas em trivialidades e não em tecnologias mirabolantes, sendo impostas pela combinação de poder coercivo dos estados subjacentes e do poder de mercado das respectivas empresas. Ainda que não tenhamos musculatura para afrontar o sistema de marcas e patentes da forma como a China está afrontando, nada impede que encontremos o nosso jeito de transgredir de forma criativa a opressão dos países desenvolvidos.

O que precisa ficar muito claro, mas muito claro mesmo, é que o modelo de desenvolvimento baseado em multinacionais, do qual grande parte da prosperidade do estado de São Paulo deriva, qualquer importância histórica que já tenha tido, não funciona mais para nada. Houve um tempo em que a burocracia empresarial da filial conseguia, de forma relativamente eficaz, se apropriar de parte relevante do poder de mercado das multinacionais, o que no passado criou uma elite econômico em torno destas. Este mundo não existe mais. A tecnologia da informação faz com que hoje as empresas sejam geridas globalmente, controladas globalmente. O modelo matriz-filial desapareceu. Que prospere uma nova vanguarda produtiva.