Friday 13 March 2015

Crédito e mais crédito, por favor

Tradicionalmente em seu processo de desenvolvimento prevalecia uma relativa harmonia dentro dos diversos setores de uma economia. Toda vez que um ou outro setor entrava em prolongado descompasso com os demais, fricções apareciam, que cedo ou tarde implicavam num reequilíbrio dos setores econômicos, tipicamente através de uma recessão. Esta regra do jogo mudou radicalmente nos últimos 20 anos, durante os quais testemunhamos ininterruptamente um processo totalmente desarmonioso de desenvolvimento econômico em escala global. Em cada economia nacional, setores de vanguarda e de retaguarda puderam abrir enormes hiatos sem nunca evidenciarem atritos relevantes. Parte deve ser atribuído à globalização do comércio, parte à própria tecnologia. Não nos interessam as causas aqui, apenas a constatação do fenômeno.

A própria taxonomia dos setores econômicos tornou-se diferente. Olhando para a história econômica recente, podemos identificar alguns grandes grupos: a infraestrutura burocrática de estado, os serviços de consumo universais oferecidos pelo estado, os serviços discricionários oferecidos pelo estado, os bens e serviços oferecidos consumidos pelo setor privado, a manufatura dos bens de consumo, o setor rural, os investimentos na capacidade produtiva e finalmente os investimentos em infraestrutura física. Propositadamente misturamos aspectos da demanda e da oferta. Numa economia sem fricções, a identidade tautológica tradicional entre demanda e oferta é de pouca relevância pragmática. Mais importante é entender as forças motrizes por detrás das atividades. O consumo pressupõe o comércio, mas não mais a produção doméstica. Estruturalmente.
Cada economia nacional do globo apresentou uma composição idiossincrática de dinamismo entre os diversos setores. Não há necessariamente que se julgar uns melhores que os outros: a economia global virou um sistema orgânico, interdependente. Para que uma economia possa ser de um jeito é necessário que outras sejam de outro jeito. Caso contrário as fricções apareceriam. No caso brasileiro é muito óbvia a composição. Praticamente todo o dinamismo econômico ficou concentrado no setor de consumo de bens e serviços. Deveras, pelas estatísticas de comércio do IBGE, nos últimos 12 anos o volume de comércio de mercadorias mais do que dobrou. As estatísticas para serviços são bem mais toscas, mas não é difícil de contemplar que o mesmo tenha acontecido com a maioria dos setores de serviço privado: restaurantes, bares, espetáculos, finanças, comunicações, ensino superior, ensino de línguas, medicina privada, tratamento odontológico, etc., tudo pare ter o dobro da dimensão de doze anos atrás. Tudo o que de mais houve na economia brasileira é absolutamente irrelevante comparado com a magnitude do crescimento do comércio dos bens e serviços.

Dada a constatação, há duas, apenas duas, questões propositivas relevantes. Quais os riscos subjacentes de uma reversão de tendência? Qual a alternativa? Para responder a primeira pergunta é importante entender as peculiaridades da atividade do comércio. O comércio não toma risco de capital no sentido tradicional de entulhar recursos hoje na esperança de receitas futuras. O comércio toma risco na operação no sentido de assumir custos fixos na esperança de que a demanda futura seja suficiente para compensá-los. A grande incógnita é se uma crise de crédito pode decorrer de uma crise do comércio. O livro-texto sugere que não. Crises de crédito derivam tipicamente de abusos ou no emprego inútil do capital ou na alavancagem das pessoas, nenhum fator dos quais está presente no Brasil. Não obstante vivenciamos um ciclo creditício de dimensões fantásticas, de alguma forma financiando o comércio. Ainda que seja difícil identificar a teia de relacionamentos que leva a isto, é ridícula a hipótese de que o ciclo creditício não esteja diretamente associado ao setor econômico de vanguarda. Se o setor dinâmico da economia brasileira foi o comércio, então é necessário que o ciclo creditício o tenha financiado de alguma forma. Agora, um setor que por si só já assume substanciais riscos na sua operação estar exposto de alguma forma a alavancagem financeira é algo bastante preocupante. Daí nossa enorme desconforto diante da complacência universal acerca dos riscos creditícios na economia brasileira. O grande risco ainda não parece ter sido identificado por ninguém.
Ainda que nossa análise esteja equivocada, e que o evento de crédito nunca se concretize, qual a alternativa? Qual o novo setor de vanguarda da economia Brasileira? Como defendemos acima, hoje, isto não parece ser mais uma questão definida localmente na economia, mas impostas pelas condições prevalentes da economia global. Se partirmos desta ótica, a resposta é evidente. Existe no mundo inteiro uma enorme carência por alternativas de investimento que propiciem geração de caixa. O grande investimento de magnitude que provê geração de caixa imediato é o investimento em infraestrutura necessária hoje. Não algo que dê fruto daqui a dez anos, não algo aumente o nível de capacidade ociosa, mas algo que cumpra uma necessidade premente. E é óbvio que o Brasil é farto de oportunidades neste sentido: temos tudo por fazer. Qualquer coisa terá efeito imediato. Qualquer ferrovia, qualquer estrada, qualquer porto, qualquer hidroelétrica, qualquer metrô. A demanda potencial por infraestrutura física no Brasil é monumental. E existe uma quantidade muito mais monumental de capital no mundo buscando exatamente este tipo de investimento. Parece ser uma questão trivial de juntar a oferta com a demanda, que pressupõe entretanto alguma coordenação política que o Brasil não parece dispor neste momento. Todos os esforços estão concentrados numa agenda fiscal que não serve a qualquer outro interesse senão acalmar o ânimo do rentista. Há que se estabelecer urgentemente uma agenda positiva: o capital virá, isto é certo. Por que não há alternativas.


Parece irônico propor a solução de uma potencial crise de crédito com mais crédito. Mas não é exatamente assim que as coisas funcionam?  

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