Tradicionalmente em seu processo de desenvolvimento prevalecia
uma relativa harmonia dentro dos diversos setores de uma economia. Toda vez que
um ou outro setor entrava em prolongado descompasso com os demais, fricções
apareciam, que cedo ou tarde implicavam num reequilíbrio dos setores
econômicos, tipicamente através de uma recessão. Esta regra do jogo mudou
radicalmente nos últimos 20 anos, durante os quais testemunhamos ininterruptamente
um processo totalmente desarmonioso de desenvolvimento econômico em escala
global. Em cada economia nacional, setores de vanguarda e de retaguarda puderam
abrir enormes hiatos sem nunca evidenciarem atritos relevantes. Parte deve ser
atribuído à globalização do comércio, parte à própria tecnologia. Não nos
interessam as causas aqui, apenas a constatação do fenômeno.
A própria taxonomia dos setores econômicos tornou-se
diferente. Olhando para a história econômica recente, podemos identificar
alguns grandes grupos: a infraestrutura burocrática de estado, os serviços de
consumo universais oferecidos pelo estado, os serviços discricionários
oferecidos pelo estado, os bens e serviços oferecidos consumidos pelo setor
privado, a manufatura dos bens de consumo, o setor rural, os investimentos na
capacidade produtiva e finalmente os investimentos em infraestrutura física.
Propositadamente misturamos aspectos da demanda e da oferta. Numa economia sem
fricções, a identidade tautológica tradicional entre demanda e oferta é de
pouca relevância pragmática. Mais importante é entender as forças motrizes por
detrás das atividades. O consumo pressupõe o comércio, mas não mais a produção
doméstica. Estruturalmente.
Cada economia nacional do globo apresentou uma composição
idiossincrática de dinamismo entre os diversos setores. Não há necessariamente
que se julgar uns melhores que os outros: a economia global virou um sistema
orgânico, interdependente. Para que uma economia possa ser de um jeito é
necessário que outras sejam de outro jeito. Caso contrário as fricções
apareceriam. No caso brasileiro é muito óbvia a composição. Praticamente todo o
dinamismo econômico ficou concentrado no setor de consumo de bens e serviços.
Deveras, pelas estatísticas de comércio do IBGE, nos últimos 12 anos o volume
de comércio de mercadorias mais do que dobrou. As estatísticas para serviços
são bem mais toscas, mas não é difícil de contemplar que o mesmo tenha
acontecido com a maioria dos setores de serviço privado: restaurantes, bares,
espetáculos, finanças, comunicações, ensino superior, ensino de línguas,
medicina privada, tratamento odontológico, etc., tudo pare ter o dobro da
dimensão de doze anos atrás. Tudo o que de mais houve na economia brasileira é
absolutamente irrelevante comparado com a magnitude do crescimento do comércio
dos bens e serviços.
Dada a constatação, há duas, apenas duas, questões
propositivas relevantes. Quais os riscos subjacentes de uma reversão de
tendência? Qual a alternativa? Para responder a primeira pergunta é importante
entender as peculiaridades da atividade do comércio. O comércio não toma risco de
capital no sentido tradicional de entulhar recursos hoje na esperança de
receitas futuras. O comércio toma risco na operação no sentido de assumir
custos fixos na esperança de que a demanda futura seja suficiente para
compensá-los. A grande incógnita é se uma crise de crédito pode decorrer de uma
crise do comércio. O livro-texto sugere que não. Crises de crédito derivam tipicamente
de abusos ou no emprego inútil do capital ou na alavancagem das pessoas, nenhum
fator dos quais está presente no Brasil. Não obstante vivenciamos um ciclo
creditício de dimensões fantásticas, de alguma forma financiando o comércio.
Ainda que seja difícil identificar a teia de relacionamentos que leva a isto, é
ridícula a hipótese de que o ciclo creditício não esteja diretamente associado
ao setor econômico de vanguarda. Se o setor dinâmico da economia brasileira foi
o comércio, então é necessário que o ciclo creditício o tenha financiado de
alguma forma. Agora, um setor que por si só já assume substanciais riscos na
sua operação estar exposto de alguma forma a alavancagem financeira é algo
bastante preocupante. Daí nossa enorme desconforto diante da complacência
universal acerca dos riscos creditícios na economia brasileira. O grande risco
ainda não parece ter sido identificado por ninguém.
Ainda que nossa análise esteja equivocada, e que o evento de
crédito nunca se concretize, qual a alternativa? Qual o novo setor de vanguarda
da economia Brasileira? Como defendemos acima, hoje, isto não parece ser mais
uma questão definida localmente na economia, mas impostas pelas condições
prevalentes da economia global. Se partirmos desta ótica, a resposta é
evidente. Existe no mundo inteiro uma enorme carência por alternativas de
investimento que propiciem geração de caixa. O grande investimento de magnitude
que provê geração de caixa imediato é o investimento em infraestrutura
necessária hoje. Não algo que dê fruto daqui a dez anos, não algo aumente o
nível de capacidade ociosa, mas algo que cumpra uma necessidade premente. E é
óbvio que o Brasil é farto de oportunidades neste sentido: temos tudo por
fazer. Qualquer coisa terá efeito imediato. Qualquer ferrovia, qualquer
estrada, qualquer porto, qualquer hidroelétrica, qualquer metrô. A demanda
potencial por infraestrutura física no Brasil é monumental. E existe uma
quantidade muito mais monumental de capital no mundo buscando exatamente este
tipo de investimento. Parece ser uma questão trivial de juntar a oferta com a demanda,
que pressupõe entretanto alguma coordenação política que o Brasil não parece
dispor neste momento. Todos os esforços estão concentrados numa agenda fiscal
que não serve a qualquer outro interesse senão acalmar o ânimo do rentista. Há
que se estabelecer urgentemente uma agenda positiva: o capital virá, isto é
certo. Por que não há alternativas.
Parece irônico propor a solução de uma potencial crise de
crédito com mais crédito. Mas não é exatamente assim que as coisas funcionam?
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