Há uma fina ironia no fato de que o pensamento econômico nem
de longe acompanha o ritmo do desenvolvimento das economias. Na melhor das
hipóteses, estamos analisando o presente com um arcabouço teórico que há muito
se tornou caduco. Mais frequentemente vemos análises através de dogmatismo teleologista
que deixaria até mesmo um Aristóteles enrubescido. Mas deixemos de lado aqueles tantos que entendem
a economia como ramo da estética ou da ética, e nos concentremos nos que a
consideram como disciplina com pretensão científica.
Há um sem número de constatações econômicas históricas que,
ainda que bem fundamentadas em seu contexto original, tornaram-se obsoletas pela
simples evolução do ordenamento econômico. Conceitos como os de saldo em conta
corrente tornaram-se inúteis num mundo em que o capital financeiro é gerido
globalmente a as transações financeiras das empresas são ditadas por
arbitragens fiscais e não por meras decisões de investimento em capital
produtivo. Não obstante, todos continuamos olhando os números de saldos em
conta corrente como se alguma informação houvesse lá.
Em sua pretensão científica a economia como nenhuma outra
modalidade do saber humano deveria se libertar do apego à tradição e abraçar a
doutrina da revolução contínua do pensamento. Se o anarquismo de Feyerabend tem
uma real utilidade é em economia: aqui não pode haver uma regra metodológica
universal, pelo simples fato de que as supostas regras por detrás do objeto de
estudo estão em contínua transformação. Infelizmente a estrutura acadêmica
vigente é fundada no pressuposto da estabilidade: o contínuo questionamento da
validade do saber acumulado é anátema.
Talvez em nenhuma outra dimensão esta inadequação seja mais
evidente do que na incapacidade dos teóricos de compreender as implicações macroeconômicas
da evolução tecnológica das indústrias manufatureiras. Ler os textos recentes
de Bresser-Pereira e sua obsessão com a doença holandesa são nítido testemunho
disso. Ele fala de um mundo em que a indústria era dominada pelo preço da
mão-de-obra como se esta realidade fosse ainda presente. Qualquer pessoa que
olhe friamente para a realidade da indústria contemporânea prontamente iria
identificar o ridículo do raciocínio. Pode colocar a taxa de câmbio a qualquer
patamar, a indústria brasileira nunca será competitiva nem com a indústria de
ponta dos países desenvolvidos, que são fruto de décadas de intensivos
investimentos em tecnologia e treinamento de mã-de-obra altamente
especializada, nem tampouco com a magnífica escala das indústrias asiáticas,
que nada tem que ver com o custo da mão-de-obra, mas antes são fruto da absurda
flexibilidade do sistema produtivo. Se alguém em 2015 ainda acha que a
revolução industrial Chinesa deriva do custo da mão-de-obra, este alguém
precisa seriamente começar a estudar o assunto com algum cuidado. O que a China
ofereceu ao mundo não foi mão-de-obra barata, antes, uma tamanha inovação em
tecnologia social, que viabilizou transformar-se em base manufatureira do mundo
inteiro numa única década. Não é por que se trata de alocação de massas enormes
de gente sem grandes qualificações que não se trata de inovação. O iPhone só
foi permitido na escala que foi, e o iPhone só faz sentido na escala que foi,
pela combinação da inovação tecnológica americana com a inovação social
Chinesa. Os dois cooperam em pé de igualdade no sucesso final do produto.
Um dos efeitos nefastos da falta de compreensão do processo
manufatureiro se manifesta na incapacidade de entendimento dos fatores
envolvidos nas transações comerciais contemporâneas, seus entraves ao
desenvolvimento das economias emergentes a as possíveis estratégias para romper
as amarras existentes. Sem este diagnóstico acurado, qualquer estratégia de
desenvolvimento econômico é pura especulação irresponsável. E que se diga com
todas as letras: não se transaciona mais mão-de-obra. O valor adicionado
diretamente pelo trabalho manufatureiro ao produto do comercio internacional é
quase irrelevante. O que se negocia, em termos de fatores econômicos subjacentes,
são outras coisas: escassez, saber tecnológico, patentes e
marcas. São estes, e somente estes, os quatro fatores determinantes do comércio
internacional. Como disse acima: o que a China exporta não é mão-de-obra, é um
saber tecnológico de engenharia social. Não existisse esta tecnologia social, o
sistema produtivo seria certamente outro, empregando agregadamente muito menos
gente no processo manufatureiro global. Vivemos num mundo peculiar, aonde o
potencial de inventividade humano é subaproveitado por conta da existência de
uma economia capaz de prover insumos humanos a um custo total menor do que
insumos tecnológicos ainda que com custos unitários bem menores. Eis a natureza
do capitalismo: com certeza existe valor para a Apple criar uma sazonalidade
brutal na produção de seus telefones: gente pode ser demitida, robôs altamente
especializados não! Analogamente podemos analisar o caso das filipinas e da índia que numa primeira visão exportam de mão-de-obra barata através de serviços. Mas é uma leitura rasa: eles estão exportando sua fluência nativa na língua inglesa, viabilizada pelos avanços na tecnologia da informação.
Tendo diagnosticado os quatro fatores subjacentes no
comércio internacional, não é difícil perceber o quão mal posicionado está o
Brasil em termos competitivos. Não dispõe de saber tecnológico quase nenhum,
não dispõe de patentes relevantes, não possui nenhuma marca de relevância
global e, o mais preocupante, não possui bens naturais escassos em quantidades.
Terra arável e minério de ferro não são bens escassos. Foram tornados escassos
conjunturalmente pela maluquice que foi a dimensão do desenvolvimento Chino e
sua intrigante demanda por minério de ferro e proteína, e pela decisão
casuística dos Estados Unidos de forçar o programa de etanol de milho que
acabou reduzindo a oferta global de terra arável para alimentos de forma
significativa. Dois eventos conjunturais que beneficiaram enormemente o Brasil.
Mas no longo prazo a fragilidade competitiva da economia Brasileira é evidente.
Temos que ter uma estratégia. Não uma visão megalomaníaca de
competir com a indústria alemã ou com a indústria chinesa. Uma estratégia convincente.
Não temos a menor chance de competir no saber tecnológico. Mas temos chances de
competir nas patentes e nas marcas. E de preferência naquelas áreas em que as
pré-condições sejam menos importantes, em que o isolamento geográfico do Brasil
seja menos relevante, em que a precariedade da massa de mão-de-obra do
Brasileiro não seja empecilho.
E não se trata apenas de competir ofensivamente, mas também
defensivamente. Uma estratégia que crie uma vanguarda econômica nacional, não
formada por grandes conglomerados oligopolistas, mas por uma vanguarda do
processo produtivo, fundada em pequenas e médias empresas, numa competição
cooperativa, que permita afrontar o poder das marcas e das patentes externas.
Que se entenda de antemão: a vasta maioria das patentes e das marcas estão
fundamentas em trivialidades e não em tecnologias mirabolantes, sendo impostas pela
combinação de poder coercivo dos estados subjacentes e do poder de mercado das
respectivas empresas. Ainda que não tenhamos musculatura para afrontar o
sistema de marcas e patentes da forma como a China está afrontando, nada impede
que encontremos o nosso jeito de transgredir de forma criativa a opressão dos países
desenvolvidos.
O que precisa ficar muito claro, mas muito claro mesmo, é
que o modelo de desenvolvimento baseado em multinacionais, do qual grande parte
da prosperidade do estado de São Paulo deriva, qualquer importância histórica que já tenha tido, não funciona mais para nada. Houve um
tempo em que a burocracia empresarial da filial conseguia, de forma relativamente
eficaz, se apropriar de parte relevante do poder de mercado das multinacionais,
o que no passado criou uma elite econômico em torno destas. Este mundo não
existe mais. A tecnologia da informação faz com que hoje as empresas sejam
geridas globalmente, controladas globalmente. O modelo matriz-filial desapareceu.
Que prospere uma nova vanguarda produtiva.