Tuesday 4 November 2014

Indústria, comércio e conta corrente

A maior farsa das teorias clássicas acerca de economias abertas e comércio internacional consiste na hipótese infantil de que se trata de um jogo cooperativo entre semelhantes, cada qual definido pelas suas capacidades produtivas, saber tecnológico e disponibilidades de recurso natural. O comércio, reza a ortodoxia, seria reflexo destas condições, naturalmente induzido pelas vantagens comparativas de cada um. Finalmente, o fluxo de capital proporcionaria um nivelamento de oportunidades, pelo qual uma dada economia, numa dada conjuntura histórica e fase de desenvolvimento, poderia prover-se, através de endividamento ou coisa que o valha, de recursos econômicos além dos oferecidos organicamente pela sua estrutura social e natural. Daí a interpretação corrente de déficits em conta corrente como reflexo da escassez de poupança doméstica: uma economia apela para poupança externa em virtude de sua incapacidade circunstancial de prover ao mesmo tempo os recursos econômicos para a satisfação de suas necessidades de consumo e investimento. Em última instância o déficit em conta corrente seria nada menos do que a expressão da escassez da força de trabalho, quer em quantidade quer em qualidade.

Se é que algum dia tiveram estas teorias algum mérito, estando aplicadas à contemporaneidade, são simplesmente pueris. Hoje, no comércio internacional, pouco se transaciona de valor adicionado pelo trabalho fabril. Algumas pessoas fantasiam plantas de manufatura infinitas na China exportando o suor de seus trabalhadores e sentem algum desejo infantil de querer uma parte no negócio. Ingenuidade. O que se transaciona hoje é acima de tudo recurso natural, quer bruto ou componente de produto manufaturado, patentes, marcas e tecnologia. A intensidade do trabalho manufatureiro no produto do comércio mundial foi dizimada pela enorme onda de automação industrial nas últimas décadas. Logo, uma economia que pratica déficits em conta corrente não está de forma alguma importando recursos humanos que lhe são escassos, antes estão primordialmente remunerando o complexo sistema de propriedade intelectual e poder de mercado que caracteriza as estruturas produtivas contemporâneas.

Nesta visão, tem que se tomar muito cuidado com o modismo de denunciar a desindustrialização da economia Brasileira. Primeiro por que é inútil querer competir com os emergentes asiáticos em sua estrondosa escala produtiva, em sua inigualável capacidade logística, e sua invejável capacidade de impor repressão financeira. O Brasil está no lugar errado do mundo, não tem densidade populacional, não tem estrutura social e muito menos institucional para promover qualquer destas coisas. Qualquer iniciativa concreta de repensar criativamente o sistema produtivo Brasileiro tem necessariamente que ir direto à fonte do problema. Não se trata do trabalho industrial, não se trata do elevado grau de produtividade aparente (por distorções da metodologia conceitual da mensuração da atividade econômica) que a indústria confere à economia. Se trata de aliviar, sem violar acordos internacionais, o enorme fardo da remuneração das marcas, das patentes triviais impostas por poder de mercado, de tecnologias que poderiam ser facilmente inseridas no sistema produtivo doméstico.


E isto pressupõe uma quebra sintomática com as tradições econômicas do Brasil. Houve um tempo em que o incentivo à proliferação de empresas multinacionais no Brasil, forçando a presença física em larga escala das mesmas, empregando enormes contingentes para na sua burocracia corporativa e de prestadores de serviços associados, trazia efetivamente benefícios econômicos. Deveras não são raros os casos em que a burocracia corporativa das filiais domésticas cooptou os interesses das matrizes imputando a si as benesses do poder econômico por detrás destas mesmas empresas. O estado de São Paulo é em grande medida reflexo disto. Só que isto não existe mais, pelo menos não na escala para ter implicações macroeconômicas relevantes. As modernas tecnologias de controles e gerenciamento corporativo impões restrições relevantes a ações desta natureza. O reflexo disto é a evidente falência do modelo de multinacionais no Brasil que continua com seu poder de convencimento político sem oferecer nenhum benefício econômico em troca. Qualquer proposição de política industrial no Brasil tem que ter como ponto de partida o rompimento de uma vez por todas com este modelo. Tem que almejar muito mais. 

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